Bombardeiam-nos
na comunicação social e no dia-a-dia com a afirmação exaustivamente repetida de
que os portugueses gastaram acima das
suas possibilidades, e com isto, justifica-se sumariamente, o endividamento,
o programa de resgate da troika, a subserviência plena face aos credores, o
ataque ao Estado Social, e as desumanas medidas de austeridade que lançam o
país numa espiral recessiva, destroem a classe média, as famílias, a economia,
e provocam o empobrecimento de vastas camadas da população.
Omite-se que a
crise do subprime (bolha imobiliária) rebentou em 2007 nos EUA, tornou-se
global pela disseminação de derivados tóxicos que contaminaram as contas dos
bancos, vários entraram em bancarrota e foram nacionalizados, arrastou-se à
Europa - exposta às fragilidades de uma zona euro disfuncional e de uma
integração económica europeia assimétrica -, provocou o problema da dívida
soberana, fruto da ganância desmedida e especulação financeira de bancos,
fundos de investimento, fundos de pensões, agentes de bolsa, agências de
rating, e da inoperância dos reguladores financeiros.
A crise do capitalismo
financeiro especulativo é uma das razões externas das dificuldades domésticas,
a que se somarão motivos fundamentais de ordem interna, consubstanciados em estratégias
e políticas erradas de padrão neoliberal e de direita, realizadas nas últimas
décadas pelo chamado bloco central (PS, PSD, CDS).
Quando alguém ousa dizer que
“gastámos acima das possibilidades”
convém recomendar a essa pessoa a consulta de um estudo do Banco de Portugal e
do INE chamado “Inquérito à Situação
Financeira das Famílias 2010” (publicação de Maio/2012), designadamente,
onde se escreve que: (i) a maior parte
das famílias portuguesas (63%) não devia nada aos bancos; (ii) a maior parte das dívidas das famílias dizia respeito à aquisição de
habitação (24,5% estava a pagar empréstimos contraídos para aquisição de
habitação principal); (iii) poucas famílias tinham outras dívidas
(3,3% - compra de outros imóveis, 13,3% - diversos fins, e 7,5% - dívidas
relativas a cartões de crédito e outros).
“Gastámos
acima das possibilidades” é um chavão malicioso carregado de
intencionalidade e ideologia, que não se ajusta ao facto do valor médio dos salários líquidos de
37% dos trabalhadores por conta de outrem se situar nos 777 euros/mês.
Nem ao
facto de existir 2,3 milhões de pessoas no país, 2/3 dos trabalhadores, que
ganham menos de 900 euros por mês. Ignora o valor do salário médio em Portugal que
era de 1150 euros, enquanto na Zona Euro atingia 2558 euros (OCDE, 2008).
Ignora também que mais de 1 milhão e 100 mil portugueses (22% - a terceira
pior taxa da UE) são trabalhadores precários.
Contradiz os índices publicados
pelo Eurostat (2011) que provam que não vivemos acima dos recursos em matéria
de direitos sociais: apresentamos a 3.ª mais alta taxa de abandono precoce do
sistema de ensino, quase 2,5 vezes superior à média da UE27; registamos os mais
baixos números de camas hospitalares por 100 mil habitantes, quase 2,5 vezes inferior
ao da Alemanha; a despesa com proteção social por habitante é menos de 2/3 da
média da UE27.
“Gastámos acima das
possibilidades” não se aplica certamente aos 17,9% dos portugueses que vivem
no limiar da pobreza (após transferências sociais), número que aumentaria para
43,4% (antes de qualquer transferência social) - dados oficiais de 2009.
Tomar a parte pelo todo chama-se falácia.
Nos dias de hoje, face às consequências devastadoras da austeridade, recessão,
desemprego, alterações negativas da Lei Laboral, a realidade é bem pior.
O país substituiu a produção nacional pelas importações, aprofundando a
dependência e o défice externos. Entre 1995 e 2007, o peso das importações no
PIB, passou de 34% para 40%.
Veja-se como a distribuição do crédito, responsabilidade
da banca, foi repartida pelos setores da atividade económica: 7,3% (!)
concedido à agricultura, pescas e indústria, enquanto 78,1% (!) foi para a
construção, habitação, imobiliário e consumo (Banco de Portugal, 2010).
Se
alguém gastou acima das possibilidades foram sobretudo empresas e figurões que se dedicaram à especulação
imobiliária e bolsista com recurso a empréstimos concedidos sem garantias ou garantias
insuficientes (Vide Relatório
Preliminar sobre a Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida Pública/2012),
e, fundamentalmente, o sistema bancário que se prestou a isto, e a muito mais,
promovendo alavancagens imprudentes, especulação, economia de casino, agiotagem
… gerando situações de bancos falidos e fraudulentos (BPN,BPP), que vamos
pagando com cortes nos rendimentos do trabalho e pensões, e aumentos colossais
de impostos.
A mesma banca cá do burgo que em 2012 lucrou 1191 milhões de euros
com a venda da dívida pública.
Jornal "Terra Ruiva"
Edição de Fevereiro/2013
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