sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

"Gastámos acima das possibilidades"



Bombardeiam-nos na comunicação social e no dia-a-dia com a afirmação exaustivamente repetida de que os portugueses gastaram acima das suas possibilidades, e com isto, justifica-se sumariamente, o endividamento, o programa de resgate da troika, a subserviência plena face aos credores, o ataque ao Estado Social, e as desumanas medidas de austeridade que lançam o país numa espiral recessiva, destroem a classe média, as famílias, a economia, e provocam o empobrecimento de vastas camadas da população. 

Omite-se que a crise do subprime (bolha imobiliária) rebentou em 2007 nos EUA, tornou-se global pela disseminação de derivados tóxicos que contaminaram as contas dos bancos, vários entraram em bancarrota e foram nacionalizados, arrastou-se à Europa - exposta às fragilidades de uma zona euro disfuncional e de uma integração económica europeia assimétrica -, provocou o problema da dívida soberana, fruto da ganância desmedida e especulação financeira de bancos, fundos de investimento, fundos de pensões, agentes de bolsa, agências de rating, e da inoperância dos reguladores financeiros. 

A crise do capitalismo financeiro especulativo é uma das razões externas das dificuldades domésticas, a que se somarão motivos fundamentais de ordem interna, consubstanciados em estratégias e políticas erradas de padrão neoliberal e de direita, realizadas nas últimas décadas pelo chamado bloco central (PS, PSD, CDS). 

Quando alguém ousa dizer que “gastámos acima das possibilidades” convém recomendar a essa pessoa a consulta de um estudo do Banco de Portugal e do INE chamado “Inquérito à Situação Financeira das Famílias 2010” (publicação de Maio/2012), designadamente, onde se escreve que: (i) a maior parte das famílias portuguesas (63%) não devia nada aos bancos; (ii) a maior parte das dívidas das famílias dizia respeito à aquisição de habitação (24,5% estava a pagar empréstimos contraídos para aquisição de habitação principal); (iii) poucas famílias tinham outras dívidas (3,3% - compra de outros imóveis, 13,3% - diversos fins, e 7,5% - dívidas relativas a cartões de crédito e outros). 

Gastámos acima das possibilidades” é um chavão malicioso carregado de intencionalidade e ideologia, que não se ajusta ao facto do valor médio dos salários líquidos de 37% dos trabalhadores por conta de outrem se situar nos 777 euros/mês. 

Nem ao facto de existir 2,3 milhões de pessoas no país, 2/3 dos trabalhadores, que ganham menos de 900 euros por mês. Ignora o valor do salário médio em Portugal que era de 1150 euros, enquanto na Zona Euro atingia 2558 euros (OCDE, 2008). 

Ignora também que mais de 1 milhão e 100 mil portugueses (22% - a terceira pior taxa da UE) são trabalhadores precários. 

Contradiz os índices publicados pelo Eurostat (2011) que provam que não vivemos acima dos recursos em matéria de direitos sociais: apresentamos a 3.ª mais alta taxa de abandono precoce do sistema de ensino, quase 2,5 vezes superior à média da UE27; registamos os mais baixos números de camas hospitalares por 100 mil habitantes, quase 2,5 vezes inferior ao da Alemanha; a despesa com proteção social por habitante é menos de 2/3 da média da UE27. 

Gastámos acima das possibilidades” não se aplica certamente aos 17,9% dos portugueses que vivem no limiar da pobreza (após transferências sociais), número que aumentaria para 43,4% (antes de qualquer transferência social) - dados oficiais de 2009.  

Tomar a parte pelo todo chama-se falácia. 

Nos dias de hoje, face às consequências devastadoras da austeridade, recessão, desemprego, alterações negativas da Lei Laboral, a realidade é bem pior.

Na verdade a raiz do problema português está focada na destruição progressiva do aparelho produtivo nacional, consequência da adesão do país à CEE (1986) e à zona euro (pós-1990).

O país substituiu a produção nacional pelas importações, aprofundando a dependência e o défice externos. Entre 1995 e 2007, o peso das importações no PIB, passou de 34% para 40%. 

Veja-se como a distribuição do crédito, responsabilidade da banca, foi repartida pelos setores da atividade económica: 7,3% (!) concedido à agricultura, pescas e indústria, enquanto 78,1% (!) foi para a construção, habitação, imobiliário e consumo (Banco de Portugal, 2010). 

Se alguém gastou acima das possibilidades foram sobretudo empresas e figurões que se dedicaram à especulação imobiliária e bolsista com recurso a empréstimos concedidos sem garantias ou garantias insuficientes (Vide Relatório Preliminar sobre a Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida Pública/2012), e, fundamentalmente, o sistema bancário que se prestou a isto, e a muito mais, promovendo alavancagens imprudentes, especulação, economia de casino, agiotagem … gerando situações de bancos falidos e fraudulentos (BPN,BPP), que vamos pagando com cortes nos rendimentos do trabalho e pensões, e aumentos colossais de impostos. 

A mesma banca cá do burgo que em 2012 lucrou 1191 milhões de euros com a venda da dívida pública. 


Edição de Fevereiro/2013


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